SATIRO BILHAR EM RESGATES DE LUCIANO LIMA
Resenha do lançamento da partitura An Illusonary Étude by Satiro Bilhar
COLUNA HUMBERTO AMORIM
10/7/20255 min read


Dos personagens pioneiros do violão no Brasil, Satiro Bilhar (185?-1926) é certamente um dos que mais instiga a curiosidade da comunidade do instrumento: tanto pelo relato de seus contemporâneos, que repetidamente o celebraram como um dos mais singulares e inventivos músicos de seu tempo; quanto pelas diversas lendas que se criaram em torno dele. Como se escreve e se pronuncia corretamente o seu nome? Em que data nasceu? Quais obras, de fato, compôs? Era mesmo um artista capaz de transformar 3 ou 4 peças em um repertório variado que, se necessário, durava uma noite inteira?
Nos últimos anos, o professor (UNESPAR), doutor, pesquisador, compositor e violonista Luciano Lima vem se dedicando a dissipar algumas de tais dúvidas, ampliando os dados disponíveis sobre este personagem cuja trajetória ainda ressente de lacunas decisivas.
"As únicas provas de que ele não foi fruto de uma imaginação coletiva na virada do século XX são duas fotografias pouco nítidas de seu rosto e uma composição [há outras cuja autoria é suposta]. Não deixou rastros de fontes primárias, uma vez que não há gravações suas ou, até o momento, manuscritos autógrafos." (Luciano Lima)
O primeiro dos esforços de Luciano para contornar parte das mencionadas lacunas se deu com a publicação de uma robusta edição da obra Tira Poeira, na qual apresenta duas imagens de Satiro e, em um texto introdutório de cinco páginas, esmiúça aspectos biográficos inéditos, expõe relatos de seus contemporâneos, destaca momentos marcantes de sua trajetória e revela os dados até então disponíveis sobre as suas datas de nascimento, além de traçar um panorama mais seguro do que podemos considerar (ou não) obras da lavra do compositor:
"Apesar da associação de Bilhar com a modinha Gosto de Ti Porque Gosto, as fontes trazem informações divergentes quanto à autoria, por vezes atribuindo a ele os versos (que teria colocado nesta modinha popular brasileira), parte da letra (que teria sido completada por Catulo), a música ou ambas. No entanto, o que temos de concreto de sua lavra é a polca Tira Poeira."(Luciano Lima).


A publicação de Tira Poeira também recria uma das virtudes musicais historicamente mais vinculadas a Satiro Bilhar: a capacidade de tocar um mesmo tema em distintos gêneros musicais. Neste sentido, Lima compilou uma série de relatos em entrevistas e jornais da época, dentre os quais despontam os depoimentos de Pixinguinha e Donga.
"Toquei muito o ‘Tira Poeira’ dele. Mas ele não fazia muita música, não. A mesma música, o ‘Tira Poeira’ por exemplo, ele tocava em vários ritmos. Às vezes, tocava como valsa, outras vezes como choro, outras como chótis (sic)." (Diário Carioca, fev. 25 1965, p. 6 / Pixinguinha em entrevista para Sérgio Cabral, grifos nossos).
"Ele não era um grande violonista, mas o som que ele tirava era bonito. Bilhar era extremamente musical e diferente dos outros. A harmonia dele era muito rica. O seu repertório se resumia a quatro músicas, mas como se desdobravam! Por exemplo: Tira Poeira ele tocava como choro, depois como valsa. Ele mudava a harmonia. Dali a pouco tirava uns sons de harpa. E assim ele fazia o baile. Desenvolvia os temas. Com quatro músicas ele acabava com o baile." (Donga, em depoimento para o Museu da Imagem e do Som / MIS-RJ, grifos nossos).
"Satyro (sic) Bilhar também tocava piano, mas só produções suas: uma valsa, um schottisch e uma polca... Com essas três músicas, era capaz de fazer uma festa uma noite inteira." (Correio da Manhã, 31 de outubro de 1926, grifos nossos).
Com base em tais depoimentos, Luciano Lima publicou, pelo Memorial do Violão Brasileiro, 3 versões da Tira Poeira (Choro, Schottisch, Valsa), recriando o processo criativo que o próprio Satiro realizava em suas composições. Os arranjos da edição tiveram como base duas cópias manuscritas da melodia, ambas de punho de Pixinguinha, abrigadas na Coleção Jacob do Bandolim/MIS-RJ e no Acervo Pixinguinha/IMS. A capa é de Giovani Letti. Eis o link para adquirir as partituras:
https://www.memorialdoviolao.com.br/tira-poeira-satiro-bilhar


Mas Lima não parou por aí... Outra das lendas que envolvem Satiro Bilhar gira em torno do misterioso Estudo de Harpa, mencionado em fontes de época como uma de suas obras mais singulares, mas que provavelmente jamais chegou a ser escrita: “Nunca reuniu em volume o que escreveu, em versos, para serem cantados, como nunca, parece-nos, mandou imprimir qualquer das suas composições musicais” (Gazeta de Notícias, outubro de 1926).
Valendo-se do fato de que Satiro foi uma referência para os seus contemporâneos e resgatando homenagens musicais que lhe foram dedicadas por dois gênios da Música Brasileira, Luciano construiu uma versão imaginária do mencionado Estudo de Harpa, na qual o tema de Tira Poeira é finamente costurado em uma textura de arpejos, apresentando ainda citações subliminares dos motivos de Tenebroso (composta por Ernesto Nazareth em homenagem a Satiro) e da Fuga da Bachianas Brasileiras N.1 (composta por Villa-Lobos também em homenagem a Satiro), bem como da modinha Gosto de ti porque gosto, atribuída a Bilhar.
Ou seja, Lima reuniu o universo sonoro que sobreviveu do legado musical de Satiro em uma única peça, revestindo-a da textura e da técnica (de arpejos) que possivelmente foram atributos únicos nas mãos de Bilhar. Tudo isso costurado por um músico que conhece como poucos a linguagem e os gêneros musicais do período e que vem se destacando como um dos principais pesquisadores no resgate de nossos personagens pioneiros.
O resultado de tal empreitada pode ser conferido na edição recém-lançada pela d’Oz, empresa radicada no Canadá e uma das mais importantes editoras do repertório para violão no mundo. Cumpre destacar que Luciano Lima já apresenta um catálogo de 31 publicações pela casa, entre composições originais, arranjos e transcrições. Um feito único e que pode ser conferido no seguinte link: https://productionsdoz.com/en/about-us/artists/lima-luciano
A página específica para An Illusonary Étude by Satiro Bilhar (Um Estudo Imaginário de Satiro Bilhar), a obra imperdível que recria toda a atmosfera musical conhecida de Satiro Bilhar, é a seguinte.


Além da homenagem e do resgate indireto da produção integral de Satiro Bilhar, a peça, que foi dedicada a Sérgio Assad, é também belíssima em termos artísticos. Mais uma contribuição ímpar de um pesquisador que vem marcando época na investigação de nossos personagens históricos (somente pelo Memorial do Violão Brasileiro, já foram publicadas por ele 36 peças inéditas em 11 publicações distintas). E os números seguem crescendo, como o arpejo caudaloso que, em outras épocas, ganhava vida própria nos dedos virtuosos do Bilhar...


Humberto Amorim
Professor (UFRJ), pesquisador, violonista e
fundador do Memorial do Violão Brasileiro
