ROBERTO E DANTON: Cosmogonautas de uma "velha verdade"

Resenha do lançamento do álbum Cosmogonias

COLUNA HUMBERTO AMORIM

9/22/202511 min read

Nas plataformas digitais, acaba de ser lançado (em 19/09/25) o álbum Cosmogonias, parceria entre o compositor carioca Roberto Velasco (1963) e o violonista gaúcho Danton Oestreich (1989). Um encontro pleno de encontros (e confrontos), musicais e humanos. Desde antes do lançamento, um raro atravessamento que vai transformando em travessia tudo aquilo que toca. Para vislumbrá-lo, contudo, ajuda-nos conhecer um pouco da trajetória destes dois artistas incríveis e como elas se tocaram há cerca de quatro anos.

Roberto Velasco é um multiartista de carreira reconhecida. Há quase quatro décadas, atua no Rio de Janeiro como compositor, artista plástico, violonista e professor. Celebrada em terras cariocas, sua música vem ganhando cada vez mais adeptos de outros estados brasileiros, assim como tem ocorrido com a circulação de suas telas e gravuras. Danton Oestreich, por sua vez, é um artista de formação plural: bacharel em violão pela forte escola instrumental da UFRGS (2012) e mestre em filosofia pela UNISINOS (2016), quando se aprofundou nos estudos de Estética e Hermenêutica inspirado, sobretudo, na obra do filósofo alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002). Daí, resulta uma primeira constatação: Roberto e Danton são duas inteligências e sensibilidades cujas buscas, internas e externas, extrapolaram o universo do violão e da música. Para os dois, o violão é um poderoso canal de expressão de inquietudes maiores.

Distantes geográfica e cronologicamente (geracionalmente, são separados por mais de duas décadas e meia), a aproximação de ambos se deu por iniciativa de Danton, em um movimento narrado em detalhes por Roberto:

Velasco acrescenta que, depois de escutar Danton tocando Bonfanti, ambos trabalharam incessantemente, durante quatro anos, “selecionando e discutindo questões referentes à composição e interpretação”. Outra constatação, portanto: Cosmogonias é fruto de um longo processo de maturação artística, o que se dá em dois níveis: tanto pela maturidade individual que ambos já alcançaram nesta etapa de suas carreiras quanto pelo longo processo de manusear detidamente o material musical que consta no álbum. Mais de duzentas peças debulhadas, estudadas, analisadas e confrontadas para se chegar a uma cosmogênese de onze peças. Mergulho raro em tempos de amores líquidos. Ou, para recordar Derrida, a travessia capaz de transformar a demora em morada.

Boa parte do processo que resultou no álbum está narrado por Danton em uma minuciosa matéria publicada em seu site, uma leitura instigante para quem quiser tocar/escutar a obra de Velasco para além da aparência. Eis o link de acesso:

No texto, nota-se que Dalton estudou profundamente cada etapa da longa e prolífica produção composicional de Velasco, que começou em 1987 e jamais foi interrompida, intensificando-se, sobretudo, a partir de 2002. Hoje são centenas e centenas de títulos cuja dimensão numérica o próprio compositor desconhece. O rio simplesmente continua a seguir o seu curso como um inescapável imperativo de existência.

Deste percurso (em permanente movimento), resultaram três álbuns anteriores: Suíte Choro (1991); Sete Mulheres (2001); Rios (2004). Danton analisou detidamente os processos que geraram cada um dos trabalhos, bem como o longo interstício que separou o último de Cosmogonias. Nas palavras do intérprete:

De acordo com os dicionários, cosmogonia seria um conjunto de princípios que se ocupa em explicar a origem do universo, a sua cosmogênese. Entretanto, o conceito de origem que atravessa o pensamento destes três artistas (Roberto Velasco, Danton Oestreich e Gonçalo Ivo) parece mais relacionado àquele proposto por Walter Benjamin, quando há uma explosão do continuum da história entendido como início (passado), meio (presente) e fim (futuro). Pelo contrário, suscita-se uma a-cronia que abre perspectiva de um presente (ou origem) para fora da cronologia: a era do relógio sem ponteiros. Um tempo, portanto, contra o tempo, sobre o tempo e além do tempo. Em outras palavras, “não é muito descrever a chuva, mas como fazer chover no escrito”. No caso do álbum, as cosmogonias são sugeridas de um todo para as partes e das partes para um todo, sem hierarquia. O todo é cuidadosamente projetado, mas pode ser subvertido com a origem sendo tomada em cada ponto específico da jornada, como descreve Danton:

O debulhamento de ambos em torno da obra se deu nos mínimos detalhes, mas com a preocupação de não limitar os seus potenciais e múltiplos sentidos de apreensão. A concepção lembra o raio de luz que atravessa um prisma e se projeta em múltiplas cores do outro lado da margem: nada é fortuito e tampouco restringente, apenas o espelho dos desvios e das aberturas de mundo que resultam de um profundo movimento de imersão e reflexão. Por qual caminho (ou cor) mergulhar na escuta do álbum? Depende da cosmogonia que ainda há (ou pode haver) em cada um/uma. E da disposição de se tornar, ainda que por um instante, parceiros cosmogonautas de seus corajosos autores.

Do título (Cosmogonias) à bela arte da capa de Ricardo Dias (baseada em uma tela homônima de Gonçalo Ivo); da escolha e sequenciamento do repertório ao processo contínuo, plástico e artesanal de criá-lo, (co)criá-lo e (re)criá-lo, cada gesto foi meticulosamente imaginado para se tornar vereda, cruzamento, fenda. São 11 faixas que nos convidam a uma jornada sensorial: escutar a vida, a música, o outro, a outra e a si mesmo para além dos ouvidos, em uma tentativa quase quixotesca de resgatar algo do que temos de mais profundo, primitivo e puro. Aquele que está além de nós (ou, se preferirmos, o Nós que está além do ). Na numerologia, aliás, o 11 representa uma ponte potencial entre o mundo concreto e o invisível, suscitando um possível elo entre a matéria e a intuição, o físico e o espiritual, o oculto e a luz. Na obra de Velasco, estas fricções são sugeridas por meio de recursos idiomáticos e no atravessamento com outras expressões artísticas, conforme sugere Danton:

Cada uma das obras foi cuidadosamente descrita por Danton na já mencionada matéria publicada em seu site (cuja leitura recomendamos enfaticamente), em um texto no qual transparece o profundo entendimento da obra que o intérprete cultivou, algo reconhecido publicamente pelo próprio compositor: “Danton entendeu muito bem a minha música para violão solo. Foi uma tremenda parceria! Muitas sugestões dele foram incorporadas às músicas. Ele é um artista pleno e bastante maduro”. O depoimento de Luis Carlos Barbieri (um dos mais importantes compositores-violonistas da atualidade), depois de escutar o álbum, ratifica a perspectiva:

As impressões de Barbieri encontram ressonância nas palavras de outro ícone do violão brasileiro, João Pedro Borges, concertista e professor da Universidade Federal do Maranhão: “A originalidade, a linguagem violonística, a singeleza dos temas, tornam difícil ouvi-las sem uma profunda emoção. Como se não bastasse, estão magnificamente interpretadas.” O depoimento de Borges aponta para o que há de mais essencial no álbum: a rara capacidade de unir simplicidade e profundidade em uma realização artística. Danton contextualiza essa união ao nos remeter aos processos criativos e harmônicos utilizados pelo compositor, um mergulho aventureiro em torno dos “modalismos velasquianos”:

A aparente simplicidade evocada pela música de Velasco também é desdobrada no depoimento de Ricardo Dias: “a obra do Roberto é um mundo. E um mundo de nuances, delicadezas, não disponíveis a uma leitura simples [...]. Músicas ótimas, um músico ótimo, um disco ótimo. Daqueles que entram para a literatura de nosso instrumento.” Ler tais depoimentos e o texto de Danton, além de escutá-lo recentemente na Mostra Fred Schneiter tocando um concerto exclusivamente dedicado ao compositor, foram gestos fundamentais para que eu começasse a enxergar a obra de Velasco (a musical e a visual) com mais camadas e conexões, como se ela fosse, de repente, um grande rizoma deleuziano ou uma Biblioteca de Babel infinita. Algo cuja urgência de escuta está para além dos ouvidos. Para além do corpo. Para além do visível...

Ouso sugerir, por isso, que escutar (e tocar) a obra de Velasco é uma experiência sinestésica: os sons têm cores, linhas, traços, curvas, rimas, humores, rumores, imagens. Nas palavras de Danton:

Há algo além, ainda. Do encontro destes dois artistas, floresce algo indizível: a cada vez que escuto o álbum, brota em mim um movimento puro e forte de ser melhor músico, melhor pai, melhor ser humano. É como se, por meio da música, conseguíssemos de alguma forma acessar o que estes dois seres humanos guardam de mais bonito. E este acesso, por sua vez, acende também em nós aquilo que temos de melhor, em um movimento circular e contínuo. Como demonstrar ou traduzir este ciclo em palavras? O instinto que nos leva a querer uma conexão franca com tudo e com todos. A pureza de contemplar (novamente) a vida com os olhos e o coração da criança que um dia todos fomos. A Música que toca a música ancestral que todos nós, de algum modo, guardamos no peito.

Cosmogonias é, antes de tudo, uma aventura utópica concebida por dois adultos que ainda não perderam a coragem de ser criança, de ter esperança, de acreditar na humanidade, no que ainda podemos ter de mais profundo e revelador. Uma utopia compartilhada por dois fantásticos artistas (que união bonita!). No álbum, não falta rigor, zelo, virtuosismo, estudo, inspiração e anos de trabalho duro. Mas há, também, esta dose indizível de uma vida em outro tempo. Chico Buarque a traduziu como o “tempo da delicadeza”; Belchior, como o tempo que vigora “entre o sonho e o som”. Dom Hélder Câmara, aliás, escreveu que não devemos temer os sonhos, mesmo que pareçam pueris: “a utopia, compartilhada com milhares, é o esteio da história”. Com este álbum, Roberto e Danton se convertem em dois cosmogonautas dessas velhas verdades, guardiões-guerreiros do que nos resta do Cosmos, as fagulhas vivas que ainda podem gestar uma humanidade mais fraterna, solidária, amorosa e artística.

No álbum, a música e a interpretação são impecáveis, mas não são o fim da escuta. Antes, veredas... fendas... furos... Também por isso, Cosmogonias deveria estar nos ouvidos e no coração de cada ser vivo deste planeta.

Humberto Amorim

Professor (UFRJ), violonista, pesquisador

e fundador do Memorial do Violão Brasileiro

A música Bonfanti [peça de três movimentos que consta no álbum] foi o elo de nossa ligação. Ele a tocou surpreendentemente bem em um recital. Entusiasmei-me para compor incessantemente outras peças para ele. De aproximadamente 200 músicas, selecionamos 11 para o álbum Cosmogonias. O título foi inspirado nas pinturas com o mesmo nome do artista plástico Gonçalo Ivo. Gonçalo é o artista cuja obra plástica toca com muita força meu coração. Faço músicas inspiradas na sua pintura desde 2004, com o CD Rios. (Roberto Velasco)

Rios [2004] foi o fruto do “meio do caminho” na travessia de Roberto Velasco e, após o longo intervalo de 21 anos, o momento atual pedia uma assimilação dos seus processos criativos em face das forças e ideias generativas que sempre estiveram presentes em meio a sua inspiração. Essas forças, diga-se de passagem, são por vezes tão diversas e dispares (expressões múltiplas da música brasileira, Bach, música africana, linguagens contemporâneas do violão, artes plásticas, poesia, etc.) que surpreende, no final das contas, que tudo continue sempre soando ao modo de Velasco. Essa lúdica das influências assimiladas, incorporadas a um estilo próprio que é maior e transversal, foi a orientação conceitual e temática de Cosmogonias. (Danton Oestreich)

Na seleção das peças para o álbum, eu obedeci a critérios conceituais [...] e também critérios de ordem do discurso musical, como contrastes de atmosferas e afetos, conexões e aproximações de elementos sonoros. Cada uma das peças possui um valor autônomo para performance, mas, ao mesmo tempo, eu conscientemente busquei por uma sucessão e estruturação ideal. (Danton Oestreich)

Elementos basilares da arte de Gonçalo Ivo – a expressão da cor, a linha, a figura geométrica –, encontram paralelos na escrita velasquiana para violão na medida em que, o sentido da idiomaticidade do instrumento, é modelada à luz não mais de qualquer expectativa harmônica convencional ou de regras preestabelecidas da composição musical, mas sim de qualidades timbrísticas que surgem como resultado do uso combinado e quase intermitente entre cordas soltas e presas no violão. (Danton Oestreich)

No álbum, as onze faixas são sugeridas na seguinte ordem:

1. Violão

2. Xilogravura

3. Baobá

4. Um Violão de Alta Classe

5. Pequenas Melodias dentro de um quadro do Volpi

6. Igreja Africana

7. Chorosa

8. Bonfanti I – Prelúdio

9. Bonfanti II – Valsa

10. Bonfanti III – Tocata

11. Linha e Música

É muito importante quando compositor e intérprete estão conectados, se admiram e encontram afinidades. Isso reflete diretamente no resultado sonoro. Em Cosmogonias a união da criativa e instigante obra do compositor (e excelente violonista) Roberto Velasco é totalmente incorporada pelo violão claro e fluente de Danton Oestreich. Uma combinação perfeita de intérprete e compositor, interpretação e emoção, fluência e beleza. Tudo o que a gente espera de um excelente trabalho. (Luis Carlos Barbieri)

Num dizer teórico – que não é definitivamente a questão aqui – poderia se falar de “modalismos velasquianos”; no entanto, perder-se-ia com isso a verdadeira perspectiva do compositor que tracejou e coloriu [os sons] com a sua música. Há grandeza na relativa simplicidade alcançada por Velasco – aquela simplicidade que, quando é realizada com habilidade, é de inestimável valor artístico e, de modo algum, fácil de se atingir. (Danton Oestreich)

A música de Velasco, além da sua genuína expressão brasileira, celebra a interdisciplinaridade com as artes plásticas e com a poesia. Gestos concisos, arcos delineados pelo movimento cíclico do retorno, a arte de dizer muito por meio do pouco que é dito, são algumas das características mais marcantes do estilo de Velasco. (Danton Oestreich)

As músicas de Roberto Velasco, reunidas em Cosmogonias, reafirmam as tantas qualidades que ao longo da sua carreira foram sendo construídas, mas ao meu ver elas também acrescentam uma nova dimensão à sua obra. Existe uma poesia, um acerto, inerente a cada uma destas pequenas peças para violão que não podem ser senão o resultado de anos de maturação estilística. Existe também um abraço à diversidade; as várias forças artísticas com que Velasco operou ao longo dos anos estão aqui reunidas. Não obstante, a música de Velasco é, a todo momento, a música de Velasco; se escuta uma voz muito própria e um dizer muito honesto, marcas cada vez mais raras em nossa era de tantos simulacros. E aquele que, talvez, pode ser considerado o seu maior dom artístico – a força imagética da sua música –, mais uma vez se comprova. (Danton Oestreich)

Penso que a arte é, de fato, um encontro, um confronto, uma promessa para com aquilo que há de mais humano em todos nós. Sim, desde há muito tempo, se disse que ao admirarmos a beleza do cosmos na verdade estamos, apenas que de um modo diferente, a admirar o que há de magnífico dentro de nós. Para mim, Cosmogonias é um gesto de reverência a essa velha verdade. (Danton Oestreich).