RADAMÉS NA AV-RIO: UM CONCERTO-CELEBRAÇÃO

Resenha da apresentação realizada na série Violões da AV-Rio, CCJF (RJ), em 06/09/2025

COLUNA HUMBERTO AMORIM

9/7/20257 min read

O percurso de vida do compositor Radamés Gnattali (1906-1988) atravessou quase que integralmente o século XX e acompanhou estreitamente o arco de lutas práticas e simbólicas que marcam a trajetória de afirmação do violão, no Brasil, como instrumento solista e vinculado a espaços socioculturais diversos: dos quintais de Tia Ciata à Academia; das salas de concerto às tradições folclóricas ou embrenhadas nas ruas (e vice-versa).

É somente a partir da “genealogia cinzenta e embaralhada” (FOUCAULT: Nietzsche, a Genealogia, a História, 1971, p. 260) que marca incisivamente o arcabouço do violão brasileiro que, quiçá, possamos imprimir uma leitura menos limitada (e limitadora) dos contextos/papeis ocupados por tal instrumento entre nossas fronteiras e para além delas. Neste sentido, Gnattali é certamente um dos personagens mais decisivos no processo (sempre contínuo e plástico) de fundamentar – pela síntese – as bases potenciais do violão no Brasil.

Em sua obra, a formação do músico de concerto é emaranhada em teias insolúveis com as tradições das músicas folclóricas e populares de seu tempo (especialmente a urbana). Mais, ela é articulada a partir da inventividade de músicos que transitaram, sem rodeios ou pudores, entre os saberes-fazeres que escapam às margens estreitas das definições compartimentadas. Não é encômio, por isso, sugerir que Radamés tenha sido um dos responsáveis por revelar, em um nível mais profundo, o violão brasileiro ao Brasil. E, pois, ao mundo.

A curva da obra de Gnattali para violão inicia em 1944, com Serestas (para violão, flauta e quarteto de cordas), e finaliza em 1985, com os três movimentos da Petite Suite (violão solo). O instrumento esteve irremediavelmente presente, portanto, em (e entre) mais de quatro décadas operando nos processos criativos do compositor. Este mergulho resultou em mais de quarenta obras que vêm, ao longo das últimas décadas, sendo continuamente tocadas, estudadas e analisadas. No âmbito do violão, pesquisas capitaneadas por estudiosos e músicos brasileiros dão uma dimensão da importância da produção: Mário Guedes Correa (2007); Ricieri Zorzal (2007, 2009); Ubirajara Pires Armada Junior (2006); Robson Barreto Matos (1999); Ledice de Felice (1999) e Bartholomeu Wiese (1995) são apenas alguns dos exemplos que se somam à rica tradição interpretativa que se integra e se estende de Laurindo de Almeida e Garoto a Turíbio Santos e Fabio Zanon; de Maurício Carrilho e Raphael Rabello a Paulo Inda e Luciano Lima.

Este último, aliás, publicou artigos científicos sobre o compositor, analisou os 4 concertos para violão solo em sua tese de doutorado (2008) e escreveu o livro de referência sobre a sua obra solista do instrumento: Radamés Gnattali e o Violão de Concerto (2017), cujo link para baixar gratuitamente deixamos aqui:

https://share.google/PfpyVP239rbqfqA9n

Na série Violões da AV-Rio deste sábado, dia 06 de setembro de 2025, esta poderosa síntese que marca a obra de Radamés foi duplamente representada: primeiro, porque a seleção de peças escolhida para a apresentação deu uma boa dimensão das potencialidades de sua produção (com direito à apresentação de 7 dos 10 Estudos); depois, pela qualidade dos intérpretes, alguns dos quais conviveram diretamente com Radamés. O mentor do recital, por exemplo, foi Luiz Otávio Braga, professor, pesquisador, compositor e violonista de destacada carreira e que tocou com Radamés na lendária Camerata Carioca, estabelecendo uma amizade e convivência com o compositor que durou quase uma década (de 1979 a 1988).

Com as falas e homenagens, a apresentação durou cerca de 1 hora e meia, mas o tempo relativo a fez parecer mais breve. Na ordem em que foi tocado, o belo programa foi o seguinte:

RADAMÉS GNATTALI: OBRAS PARA VIOLÃO SOLO E DE CÂMARA

PROGRAMA

Estudo I / Estudo II / Dança Brasileira

Mario da Silva: violão

Estudos IV / Estudo X

Luiz Otávio Braga: violão

Pequena Suite: I. Pastoril / II. Toada / III. Frevo

Matheus Maciel: violão

Suíte Retratos: I. Pixinguinha

Luiz Otávio Braga e Marcos Farina:

duo de violões

Estudo III / Estudo VI / Estudo V

Fábio Adour: violão

Sonatina para Flauta e Violão.

I. Cantando com simplicidade

Tacio Prevatto: violão / Erick do Carmo: flauta

Saudade (arr. Laurindo de Almeida)

Brasiliana Nº. 13: I. Bossa-Nova / II. Valsa

Nicolas de Souza Barros: violão de 7 cordas

Tocata em Ritmo de Samba I

Tocata em Ritmo de Samba II

Marco Lima: violão

Amargura (Radamés Gnattali / Alberto Ribeiro)

Arr.: Luiz Otávio Braga

Duo Andrea Adour (canto) e Fábio Adour (violão)

Alguns pontos extramusicais enriqueceram ainda mais o recital:

1) As histórias narradas por alguns dos intérpretes representam vivências in loco que não constam em nenhum livro ou estudo: Luiz Otávio Braga deu detalhes de sua convivência com o Maestro, rememorou as 13 fitas cassetes que deu de presente a Radamés com gravações de suas obras e que, no final da vida, o compositor continuamente escutava deitado em uma rede proferindo comentários ora felizes e ora ferinos; Nicolas de Souza Barros explicou como teve acesso ao manuscrito da Brasiliana N. 13, em 1983, mesmo antes da estreia realizada por Turíbio Santos; Mario da Silva mencionou episódios raros dos encontros de Radamés com Garoto e Waltel Branco. O Memorial do Violão Brasileiro, aliás, possui alguns documentos raros de Radamés Gnattali. Um deles é justamente uma cópia da Sonatina para Flauta e Violão com dedicatória manuscrita do compositor para o amigo e parceiro musical Waltel Branco, doada ao nosso acervo pela família Leo Soares (a quem o documento pertencia):

2) Outra bonita passagem do concerto ocorreu quando, ao convocar ao palco o violonista Matheus Maciel, Luiz Otávio Braga lembrou que, meses atrás, o convite inicial havia sido feito para Bartholomeu Wiese (1962-2025), importante personagem do violão carioca recentemente falecido. Já debilitado pela doença que o vitimou, Bartô não pôde aceitar a solicitação, mas sugeriu que o jovem professor e virtuose Matheus o substituísse. E assim foi feito. Ambos celebraram a memória do amigo em suas falas. Luiz, inclusive, pediu ao público uma salva de palmas póstuma para Bartholomeu, homenagem que ecoou pela bela sala do CCJF por alguns minutos. Um momento emocionante.

3) Todos os solos tiveram brilho e compuseram, juntos, um rico mosaico musical, espelhando os artistas de alto nível convocados para a celebração. Também cumpre ressaltar, por diferentes motivos, os duos: o de violões (Luiz Otávio Braga e Marcos Farina) botou no palco um intérprete que tocou aquele mesmo movimento (I. Pixinguinha) da Suíte Retratos diretamente com Radamés; o de violão e flauta (Tacio Prevatto e Erick do Carmo) interpretou com uma sonoridade encantadora o belíssimo 1º mov. (Cantando com Simplicidade) da Sonatina para estes instrumentos; e o de canto e violão (Andrea Adour e Fábio Adour), fechou a noite com aquela que talvez seja a obra para canto mais conhecida de Radamés, certamente uma das mais belas. Trata-se de Amargura (1950), que encontrou na voz de Andrea Adour, professora da UFRJ, uma intérprete que fez jus às melhores versões de um samba-canção que, há mais de sete décadas, recebe gravações antológicas de artistas clássicos e populares.

Uma dessas intérpretes foi Claudia Savaget, que a gravou em 1985 e interpretou a obra acompanhada pelo próprio Radamés Gnattali. Luiz Otávio Braga relembrou o fato, aproveitando a ilustre presença de Claudia na plateia para homenageá-la e testemunhar que essa foi uma de suas inspirações para arranjar a peça com acompanhamento de violão (o original é para canto e piano), um arranjo finamente executado, no concerto da AV-Rio, por Andrea e Fábio Adour.

Finalmente, destaco o ambiente envolvente dos concertos coletivos promovidos pela AV-Rio. O formato acaba dando a oportunidade do/da ouvinte escutar diferentes sonoridades e possibilidades criativas de um determinado repertório ou tema, o que ajuda a manter um fluxo de dinamicidade e interesse ao longo do programa (que, repito, pareceu mais curto do que a sua duração real), além de ser um fator para aumentar o potencial público presente. Somente em 2025, a AV-Rio promoveu outros dois eventos de sucesso que corroboram a funcionalidade do formato: Compositoras nas cordas do violão (julho); J. S. Bach: um gênio universal (abril). Parabéns à equipe, representada, desta vez, por Nicolas de Souza Barros (curador), Luís Antônio de Medeiros (ingressos) e Waldinar Meneses (administração).

Este último, aliás, aniversariou esta semana e faço questão de registrar aqui um agradecimento público ao Vavá (como ele é conhecido carinhosamente no meio violonístico carioca). Figura pacata e tranquila, mas extremamente decisiva no cenário do violão na cidade, seja trabalhando silenciosamente e sem chamar atenção para si, seja incentivando e presenciando quase todos os eventos do instrumento que ocorrem no Rio de Janeiro. Felicidades, Vavá! Abaixo, deixo uma foto para homenageá-lo (ao lado do virtuose argentino Victor Villandangos) e mais alguns registros do evento. Até a próxima!

Humberto Amorim

Professor (UFRJ), pesquisador, violonista

e fundador do Memorial do Violão Brasileiro