O VIOLÃO ARQUITETÔNICO DE TOMAS HAUSHAHN
Resenha do Concerto realizado na série Violões da AV-Rio, CCJF (RJ), em 02/08/2025
COLUNA HUMBERTO AMORIM
8/7/20258 min read


Vivendo um período de efervescência, a agenda carioca de concertos para violão iniciou oficialmente o segundo semestre com mais um evento destacável: o recital do gaúcho Tomas Haushahn, que se apresentou na série Violões da AV-Rio, na bela sala do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF), em 02 de agosto de 2025.
Nascido em Montenegro (RS), a 60 Km de Porto Alegre, o jovem de 27 anos vem acumulando feitos notáveis em sua promissora carreira: formou-se Bacharel em Violão com láurea acadêmica pela UFRGS (2023), na classe de Daniel Wolff (que há muito tem sido um celeiro de grandes violonistas); concluiu o Mestrado em Performance pela Radford University (EUA), sob orientação de Robert Trent (outro personagem que tem tido papel fundamental na projeção internacional de violonistas brasileiros); e se destacou com premiações em certames nacionais e internacionais de relevo, como o 1º prêmio no X Concurso Nacional de Violão Fred Schneiter (RJ) e o 1º prêmio no XIII Concurso Rosen-Schaffel (EUA) para jovens solistas, competição aberta para todos os instrumentos, ocasião na qual a sua interpretação do Concerto para Violão de Villa-Lobos o levou a ser o primeiro violonista a estar no topo da lista.
De volta ao Rio depois de dois anos, Tomas apresentou um repertório já lapidado em seus dedos. Eis o programa na ordem em que foi tocado:
TOMAS HAUSHAHN – PROGRAMA
Série Violão da AV-Rio
COSTE, Napoleon (1805-1883)
Fantaisie Dramatique, Op. 31 "Le Depart"
GRANADOS, Enrique (1867-1916)
Valsas Poéticas
I. Introdução - Vivace Molto
II. Melódico
III. Tempo de Vals noble
IV. Tempo de Vals lento
V. Allegro humorístico
VI. – Sentimental
VII. Presto
PASCHOAL, Vicente (1979)
10 Estudos para Violão
Estudo N. 1: Allegretto
Estudo N. 2: Moderato
Estudo N. 3: Allegro
Estudo N. 4: Adagio
Estudo N. 5: Vivace
Estudo N. 6: Moderato
Estudo N. 7: Andante
Estudo N. 8: Andante
Estudo N. 9: Lento
Estudo N. 10: Allegro
BIS
VILLA-LOBOS, Heitor (1887-1959)
Estudo N. 1


O recital, portanto, iniciou com uma obra-prima do repertório clássico-romântico: a Fantasia Dramática, op. 31, subintitulada “A Partida”, do francês Napoleon Coste, discípulo de Fernando Sor, autor de métodos e de uma larga produção para o instrumento. Embora canonizada na literatura, sua obra raramente tem sido tocada em terras cariocas. Ao apresentar a peça, Tomas explicou que a interpretação foi lapidada durante o seu mestrado, orientado por Robert Trent (um dos maiores especialistas do mundo no repertório para violão do século XIX), o que se refletiu em uma concepção amadurecida tanto no arcabouço geral quanto nos detalhes: controle absoluto dos planos sonoros, com a elegância e a clareza de som que este tipo de repertório exige.
Já do espanhol Enrique Granados, personagem quase tão famoso ao violão quanto ao piano (seu instrumento de origem) em função da organicidade resultante das transcrições de suas peças para as seis cordas, Tomas tocou as célebres Valsas Poéticas (1887), sete movimentos já incorporados na literatura do instrumento pelas páginas musicais belas e vivazes, cheias do frescor juvenil de um compositor que a concebeu na plenitude dos 20 anos. No repertório do instrumento, a obra ficou icônica sobretudo desde as transcrições/gravações de Julian Bream e John Willians. Neste concerto, Tomas apresentou uma transcrição própria, elaborada ainda durante a sua graduação, o que nos revelou o seu fino conhecimento das possibilidades do violão. O feliz resultado encontrou uma interpretação de ligeirismos encantadores, segurança nas passagens mais exigentes e belos contrastes entre as valsas mais dançantes e as mais lentas, de agógicas mais livres.
De acordo com Tomas, as duas primeiras obras do programa foram uma 1ª parte contrastante, de certa forma preambular, para o que viria na sequência: a esperada estreia brasileira dos 10 Estudos para Violão (2025) do carioca Vicente Paschoal, monumental obra que o próprio Tomas estreou recentemente nos Estados Unidos, em abril de 2025.
Antes de mergulhar na empreitada, o intérprete frisou que a série apresenta exigências e qualidades não somente técnicas, mas também artísticas. De fato, foi o que pudemos constatar na apresentação de Tomas, que interpretou os estudos em duas séries de cinco (mantendo a sua respectiva sequência numérica):


O N. 1, Allegretto, é um estudo de arpejos cujo tema exige que o polegar percorra em sequência as três notas mais graves de cada acorde, criando um interessante efeito de cascata e uma abertura triunfal para a série. O N. 2, Moderato, apresenta um ostinato em ligados compostos que vai sofrendo pequenas variações enquanto o tema se desdobra nas cordas agudas. O N. 3, Allegro, é costurado entre um delicado tema na região aguda e novamente um ostinato que se desenha na região média do instrumento. No N. 4, Adagio, os dedos P, I e M da mão direita são tangidos simultaneamente, das cordas graves às agudas, enquanto os sucessivos acordes são montados, em uma dinâmica harmônica que remeteu à força expressiva dos mais belos estudos de acordes de Chopin. O N. 5, Vivace, é um estudo cuja sequência de ligados vai se construindo a partir de uma posição fixa no braço do instrumento (geralmente uma pestana), em um arcabouço que faz alusão ao Estudo 2 de Villa-Lobos, mas que depois vai ganhando vida própria em texturas variadas. Tecnicamente, um dos mais exigentes da série, tocado com segurança e bravura pelo intérprete.
Depois dos cinco primeiros, Tomas agradeceu ao público pela presença e à AV-Rio pelo convite, reiterando a sua alegria em voltar a tocar no Rio de Janeiro e recobrando o fôlego para a segunda metade do ciclo. A esta altura, analisando a série em perspectiva, já começava a se evidenciar algo que os estudos restantes ratificaram: o pensamento arquitetônico tanto do compositor quanto do intérprete, exposto em camadas criativas ao mesmo tempo entrelaçadas e distintas.
O Estudo N. 6, Moderato, por exemplo, apresenta um padrão de acompanhamento na região média enquanto o tema se desenrola na região aguda, em uma engenhosa costura que remete ao Estudo V de Villa-Lobos. Uma montagem arquitetônica na qual as partes, embora divergentes, irremediavelmente dialogam e se completam. O N. 7, Andante, é outra arquitetura do gênero, com melodia na ponta e um padrão de acompanhamento na zona intermediária, em uma construção que remete a alguns dos estudos de Sor. O resultado é uma textura polifônica ao mesmo tempo familiar e inédita, já que o compositor vai articulando variações e interações sucessivas entre as vozes. Já o N. 8, Andante, é um estudo de trêmulo dos mais belos. Um dos mais longos e difíceis da série, exige que o intérprete mantenha o pulso (sem cavalar as notas agudas) mesmo com as sucessivas mudanças de textura e ritmo solicitadas ao polegar da mão direita. Vicente não poupou os dedos de suas/seus colegas violonistas, mas igualmente os compensou com uma página musical de rara inspiração. O N. 9, Lento, aliás, pode ser definido nos mesmos termos: pura inspiração. Um tema calmo, apaixonado e simples, de duas notas em ritmo pontuado, quase um afago no violonista após o exigente trêmulo anterior e certamente um acalanto no coração dos/das ouvintes antes do último estudo da série. Uma belíssima música e que encontrou, em Tomas, um inspirado intérprete.
Fechando a série, o N. 10, Allegro, enérgico estudo de arpejos e técnicas variadas (trechos escalares, ostinatos, sequências de notas repetidas, etc.), além de passagens ornamentais que rememoram o Estudo VII de Villa-Lobos. Vale destacar que o final deste estudo teve contribuições do próprio Tomas na composição, o que reitera a fina sinergia existente entre o compositor e o intérprete no mergulho da obra. Foi um final pulsante, como uma série desta envergadura não poderia deixar de ter.
Minha impressão geral é que são 10 Estudos que vieram para ficar na literatura brasileira do instrumento, marcada por ciclos tão monumentais como os de Villa-Lobos, Mignone, Radamés (só para citar três dos mais icônicos). E justifico: por um lado, eles demonstram a segurança criativa de um compositor que tem rica formação/cultura auditiva e que soube beber na fonte dos principais compositores do gênero. E me refiro, aqui, a todos os instrumentos: violão, piano, violino, etc., com um arcabouço no qual identificamos traços de Villa-Lobos, Chopin, Paganini, Sor, mas também de gênios do cancioneiro popular brasileiro, como Tom Jobim ou Guinga. Por outro lado, ficou patente que o estágio de maturidade artística de Vicente já é capaz de evidenciar um traço artístico próprio, marcado pela experiência de um virtuose que domina como poucos a mecânica de seu instrumento e que não para de investigar os seus potenciais caminhos criativos. Em síntese: um ciclo definitivamente vitorioso e que soma uma inegável qualidade técnica e musical ao repertório do instrumento.
Destaco, por fim, as qualidades do intérprete: minucioso, alto nível de infalibilidade, sonoridade cativante e controlada em todas as regiões do instrumento (raramente escutei um som tão bonito e límpido depois da 12ª casa, inclusive em acordes cheios com posições bem exigentes para a mão esquerda), um perfeito equilíbrio entre virtuosismo e musicalidade. Em síntese, mais do que engenharia, uma arquitetura bem acabada e detalhista.
Admirável, também, é o fato de Tomas se dedicar a uma série tão exigente de um compositor contemporâneo e ainda jovem, alargando as possibilidades de escuta e realização do repertório do violão brasileiro. Por vezes, um determinado ciclo só precisa de um grande intérprete e um empurrão inicial para decolar. Neste sentido, o encontro artístico entre Vicente e Tomas pode se configurar em um acontecimento decisivo para o violão brasileiro. Se o caso fosse de aposta em fichas, por exemplo, arriscaria as minhas sem medo. Se os 10 Estudos se consolidarem, Tomas terá tido uma parcela fundamental em função de sua competência, dedicação e, porque não dizer, uma certa de dose de coragem e audácia (e não que isso tenha influenciado na apreciação musical, mas quem, afinal, não foi cativado pelas suas já clássicas meias pretas com detalhes de violão?).


E, para constar, depois de interpretados os 10 Estudos de Vicente Paschoal, o bis foi o Estudo N. 1, de Villa-Lobos, tocado meio de surpresa (possivelmente o intérprete não esperava a prolongada ovação que recebeu do público e a necessidade de ter que voltar ao palco para mais uma peça) em um andamento capicioso, como se o violonista não tivesse acabado de vencer uma longa e exigente série. Quem o quiser escutar no Rio de Janeiro, ainda tem a possibilidade de ir à Escola de Música Sarau Brasil (Senador Vergueiro, 186, Flamengo), nesta próxima sexta-feira (dia 08/08), às 19h, quando ele dividirá o palco com outro jovem talento, Igor Lazier, recentemente finalista do XII Concurso Nacional de Violão Fred Schneiter. Um evento imperdível.
Mais uma vez, quero registrar os parabéns e o agradecimento à AV-Rio pela oportunidade de assistirmos a um artista diferenciado por preços baixos. Desta vez, a equipe foi representada por Tácio Prevatto (apresentador), Nicolas de Souza Barros (curador), Augusto Cornelius (gravação audiovisual e redes sociais), Waldinar Meneses (administração) e Luís Antônio de Medeiros (ingressos). Até a próxima!


Humberto Amorim
Professor (UFRJ), pesquisador, violonista e fundador do Memorial do Violão Brasileiro