O LEGADO DE FRED E A MAIORIDADE DE UM EVENTO ÚNICO

Resenha do XII Concurso Nacional e da XXI Mostra de Violão Fred Schneiter, Rio de Janeiro, 22-26/07/25

COLUNA HUMBERTO AMORIM

7/29/20258 min read

Só um coração e um ideal gigantes poderiam sustentar 21 edições da Mostra e 12 edições de um concurso, ambas iniciativas criadas não somente para movimentar o cenário do violão no Brasil, mas sobretudo para manter vivo o legado de Fred Schneiter (1959-2001), personagem que, embora falecido prematuramente (aos 41 anos), deixou uma obra extensa e significativa como compositor e intérprete.

Criados e dirigidos por Luis Carlos Barbieri, os eventos vêm se mantendo sem patrocínio oficial/institucional desde o início, valendo-se das doações (em dinheiro e serviços) do bravo grupo de Amigos da Mostra. Por mais de duas décadas, Barbieri vem capitaneando esforços desmedidos para manter o nível da programação, mesclando convidados estrangeiros, de outros estados brasileiros e do Rio de Janeiro. Na abertura e no encerramento, brincou com a plateia ao se referir à maioridade simbólica alcançada pela Mostra: “só espero que não seja como aquele filho que, ao completar 21 anos, fica na casa dos pais vivendo para sempre”.

Em 2025, tanto o Concurso quanto a Mostra ocorreram mais uma vez na bela sala Guiomar Novaes/Sala Cecília Meireles, importante espaço da vida cultural carioca e que entrega uma das melhores infraestruturas do país para eventos do gênero, além de ter uma ótima acústica para violão.

A programação de cinco dias iniciou com o Concurso, ocorrido nos dias 22 (semifinal) e 23 (final) de julho. Houve uma fase eliminatória anterior, em audiovisual, que reuniu candidatos de quase todos os estados brasileiros e que teve na banca os seguintes membros: Luis Carlos Barbieri, Clayton Vetromilla, Cyro Delvizio, Mario da Silva, Thaís Nascimento e Vicente Paschoal. Foram escolhidos 08 candidatos e 01 candidata (com representação de sete estados) para as etapas seguintes (semifinal e final). Já as provas públicas tiveram um júri ampliado, com presença inclusive de nomes internacionais: Luis Carlos Barbieri (presidente), Clayton Vetromilla, Cyro Delvizio, Eduardo Castañera, Marco Lima, Mario da Silva, Roberto Velasco, Thaís Nascimento, Ximena Matamoros e Zé Paulo Becker.

Aqui, é preciso destacar um aspecto louvável do certame. Tenho acompanhado provas de concursos internacionais transmitidos ao vivo (alguns dos quais considerados os mais importantes do mundo) e, em parte significativa deles, tem imperado um modo de interpretação mais linear, voltado para uma performance precisa e interpretações que, embora bem acabadas, geralmente não entregam aquela dose de espontaneidade e emoção que nos arrebata de um jeito diferente. Nesta edição do Concurso Fred Schneiter, porém, o que se viu foram jovens dispostos a arriscar, mostrando personalidade em interpretações ousadas e viscerais. A excelente obra de confronto da semifinal (Choro da Mata Nova, de Zé Paulo Becker), por exemplo, recebeu versões tão encantadoras quanto díspares. Isto é um alento e um sopro de vida para quem enxerga o violão no Brasil em perspectiva. O futuro pede passagem e há muita gente boa vindo por aí...

Para a final, classificaram-se cinco candidatos: Filipe Barbosa (SP), Thales Vieira (DF), Pedro Sett (RJ), Gustavo Silveira (CE) e Igor Lazier (PR). O resultado final foi o seguinte:

PREMIADOS NO XII CONCURSO NACIONAL FRED SCHNEITER


1° Lugar, Prêmio Fred Schneiter:

GUSTAVO SILVEIRA (CE)


2° Lugar, Prêmio Jodacil Damaceno:

FILIPE BARBOSA (SP)


3° Lugar, Prêmio AV-Rio/ Júlio de Cepeda:

THALES VIEIRA (DF)


Prêmio Sarau Brasil (Melhor Intérprete de Fred Schneiter): Gustavo Silveira (CE).
Prêmio Essenfelder (Melhor Intérprete de Zé Paulo Becker): Igor Lazier (PR).
Prêmio Sérgio Abreu (Melhor Intérprete de Música Barroca): Gustavo Silveira (CE).

Enfileirando três premiações e mostrando uma rara maturidade musical e técnica para um jovem de sua idade, o cearense Gustavo Silveira (aluno do professor e virtuose João Raone na Universidade Federal do Rio Grande do Norte) levou o caneco principal novamente para o Nordeste (o primeiro a fazê-lo foi o baiano Afonso Celso, na edição de 2019). Todavia, o grande vencedor/a do evento foi o/a ouvinte, que pôde desfrutar de um concurso equilibrado e de altíssimo nível.

Estreando no Rio de Janeiro, Danton tocou um repertório de 09 peças exclusivamente dedicado ao compositor, violonista e artista plástico carioca Roberto Velasco (1963-), personagem que há décadas vêm construindo uma obra tanto extensa quanto inspirada. Muito conhecida no Rio de Janeiro, a produção de Velasco vem merecidamente ganhando cada vez mais adeptos de outros estados, como Luciano Morais (SP) e o próprio Danton, intérprete que mostrou uma rara conexão com o repertório escolhido. Destaque para a vibrante versão de Bonfanti, peça em três movimentos que foi conduzida como uma cachoeira de águas ora suaves e ora pujantes. Também vale destacar que, enquanto o intérprete tocava as músicas, as belas obras plásticas de Velasco eram projetadas em sequência acima do palco, criando um efeito sinestésico para a apresentação: ora as cores das gravuras pareciam sair da boca do violão e ora os sons do violão pareciam projetados a partir das telas em exibição. Aqui, registro uma nota pessoal: emocionei-me com as palavras de Danton antes da última obra, ao nos lembrar que a música tem a capacidade de criar conexões e encontros profundos, mesmo que distantes física ou temporalmente. Palavras sensíveis de um artista sensível e que protagonizou uma bela estreia nos palcos cariocas.

Já a XXI Mostra começou no dia 24/07, com as apresentações do gaúcho Danton Oestreich e do mexicano Francisco Gil:

Encerrando a primeira noite, um velho conhecido do violão no Rio de Janeiro: o mexicano Francisco Gil, com diversas passagens pelo país e duas apresentações em edições anteriores da Mostra, ambas tocando em um violão de seis cordas. Desta vez, entretanto, o artista empunhou um alaúde barroco, instrumento ao qual vem se dedicando profundamente nos últimos anos e que assumiu protagonismo definitivo em sua destacável carreira. O belo repertório contou com a Suíte BWV 1008, de Bach, e a Suíte em Am, de Ponce, peça na qual o compositor mexicano homenageou o alemão S. L. Weiss (1686-1750) ao emular o seu estilo composicional. A obra foi transcrita do violão para alaúde pelo próprio Gil, uma forma de desdobrar a homenagem a Weiss e devolver a peça ao seu instrumento simbólico de origem. Foi a primeira vez que escutei Francisco ao alaúde e, sem dúvidas, o músico continua a destilar o refinamento que o consagrou como um dos principais instrumentistas mexicanos da atualidade.

Já o 2º dia da Mostra (25/07) ficou a cargo de dois artistas radicados no Rio de Janeiro: a gaúcha Thaís Nascimento, que há alguns anos reside em terras cariocas; e o próprio Luis Carlos Barbieri, diretor do evento:

Thaís e Barbieri tocaram um repertório com enfoque em compositoras e compositores brasileiros, mas que infelizmente não pude assistir por conta dos horários casados com outros eventos igualmente imperdíveis de violão no Rio de Janeiro (o recital de Thiago Colombo às 17h, na Rádio MEC, e o recital do Trio Elipsoidal às 19h, no BNDES). Contudo, pelos registros disponíveis nas redes sociais e pelo acompanhamento que faço do trabalho acurado de ambos há anos, só pode ter sido uma noite especial, vibrante e cheia de alegria e boa música.

Já a noite de encerramento (26/07) colocou no palco duas gerações e dois repertórios distintos: o jovem talento Lucas Félix e o consagrado virtuose Eduardo Castañera:

Lucas tocou temas instrumentais e arranjos de alguns de nossos compositores populares mais sublimes (Tom Jobim, Luís Bonfá, Baden Powell, Vinícius de Moraes, Antônio Maria). Esbanjando simpatia, o violonista contou um pouco de sua trajetória (que oscila entre a música e a carreira acadêmica como Engenheiro de Alimentos) e do percalço que enfrentou para chegar ao evento vindo de carro de Taubaté (SP), sua cidade de origem, contornando engarrafamentos colossais em função de acidentes na estrada. Valeu a pena o esforço (para ele e para os/as ouvintes), já que o músico entregou belos arranjos e interpretações.

Os acordes finais do evento, por sua vez, ficaram a cargo de uma lenda do violão latino-americano: Eduardo Castañera, argentino radicado há décadas no Rio Grande do Sul e, há mais de cinquenta anos, protagonista de uma das carreiras internacionais mais destacadas do continente. Basta lembrar que, dentre tantas realizações ímpares, Castañera foi o vencedor do disputadíssimo 1º Concurso Internacional Villa-Lobos (1980), em uma edição na qual concorreram nomes como Marcelo Kayath, Roland Dyens, Paulo Porto Alegre, Eduardo Isaac, entre outros ícones (ver foto abaixo, na qual ele acabara de assinar o histórico LP gravado pelos premiados daquele concurso). Na Mostra, Eduardo tocou um repertório exclusivamente latino-americano: Ariel Ramirez, Agustín Barrios e Astor Piazzola. Emocionante não somente pelo virtuosismo e musicalidade habituais (que Oblivion nos brindou!), mas pela graça de poder apreciar um artista cuja aura foi dourada pelo tempo. É uma experiência e aprendizado diferentes escutar um colega que há tantos anos se dedica a fazer o seu trabalho no mais alto nível com a mesma dedicação, rigor e amor. E que segue, como o jovem de espírito que é, abrindo caminhos e fazendo história. Um privilégio e algo muito profundo do ponto de vista musical e humano. Também por isso, a Mostra não poderia encerrar de forma mais bonita e significativa.

Uma nota final sobre os eventos: a programação mais uma vez foi muito bem arquitetada, apresentando diversidade e contraste entre os/as participantes, além de um clima especial de amizade e afeto (mesmo no ambiente do Concurso) que já é característico da Mostra. Fica o agradecimento e os parabéns a esta locomotiva do Violão Brasileiro que se chama Luis Carlos Barbieri. Não bastasse ser um compositor, violonista e articulador cultural de mão cheia, Barbieri também é um ser humano bondoso, simples e agregador. A lenda diz que o fruto não cai longe da árvore. Por isso mesmo, ao atingir a plena maioridade, a Mostra e o Concurso só poderiam mesmo refletir todo este brilho artístico e humano de seu valente fundador.

Fred Schneiter, de onde estiver, certamente segue feliz e orgulhoso de seu parceiro. Nós, agradecidos, também.

Humberto Amorim

Professor (UFRJ), violonista, pesquisador e fundador do Memorial do Violão Brasileiro