GABRIELE LEITE: O VIOLÃO BRASILEIRO NO TOPO DO MUNDO
Resenha do concerto realizado no Blue Note Rio, no Rio de Janeiro, em 06/08/25.
COLUNA HUMBERTO AMORIM
8/16/202511 min read


O ano era 2017. Gabriele Leite já começara a desbravar os caminhos que a levariam a se tornar uma das principais artistas brasileiras da atualidade. O palco, contudo, era outro: um canto improvisado na sede de uma autoescola automotiva. O público: a turma heterogênea que acabara de se formar no curso e que estava ali para comemorar coletivamente o feito nas quatro rodas. O gosto da plateia: bem, dos fãs de sertanejo universitário aos icônicos bafejadores do bordão “toca Raul”. O resultado: Gabi quebrou a banca e arrancou das/dos ouvintes frases incrédulas: “jamais imaginei que o violão fosse capaz de fazer isso”.
De lá para cá, não parou mais de alargar os territórios e os horizontes (e arrisco dizer que não somente os seus, mas também os do Violão Brasileiro). De Cerquilho (SP), uma cidade do interior paulista com menos de 50 mil habitantes (e na qual, segundo ela própria, “tomo mundo conhece todo mundo”), Gabriele Leite (1997), hoje com 28 anos recém-completos, é filha de um mecânico automotivo, Roberto Leite, e de uma costureira de ofício, Edelzuita Rodrigues dos Santos. Nascida e criada, portanto, em uma família que não tinha no bojo a presença de músicos profissionais. Atenta aos interesses de Gabi, porém, a mãe notou que repetidamente a filha, ainda com 4 ou 5 anos, empunhava uma vassoura como se fosse um violão, simulando tocatas e apresentações naquele improvisado instrumento imaginário. Logo depois, aos 06 anos, ganhou um violão do padrinho-tio-avô, Éfito Reis. E estas foram as fagulhas necessárias para que a família buscasse formação musical inicial para a filha no incrível Projeto Guri, ação social que há décadas vem sendo decisiva na formação de gerações de músicos e apreciadores/as musicais. Gabi tinha, à época, seis anos.
Do Projeto Guri ao Conservatório de Tatuí, outra instituição de referência no ensino musical do Brasil, foi um passo natural. Lá, ficou de 2010 a 2015 (dos 12 aos 18 anos) consolidando a formação de base (inclusive como bolsista nos dois últimos anos) e já se destacando como instrumentista, caminhos que a levariam a ingressar, no ano seguinte (2016), no Bacharelado em Violão da UNESP, uma das mais prestigiadas universidades públicas do país. Durante a graduação, fez de tudo: participou de concursos, masterclasses e festivais; atuou como professora de violão em aulas particulares e redes privadas; e tocou em diversos espaços como solista e camerista. Logo no início do curso, o seu trabalho sólido a levou a ser uma das vencedoras do disputado programa de Bolsas de Estudo Magda Tagliaferro (externo à Universidade), da Sociedade Cultura Artística, onde ficou de 2016 a 2022 e teve aulas com o renomado virtuose Paulo Martelli.
Foi Martelli, aliás, quem plantou a semente no seu pensamento: “você deveria fazer o seu mestrado fora do Brasil”. Quando escutou isso pela primeira vez, Gabriele, em suas próprias palavras, “sabia falar uma ou duas palavras em inglês”. Foi a própria jovem que confidenciou como resolvera a lacuna: “não sou uma pessoa que foge dos desafios”. Três anos depois, após enfileirar concursos nacionais e ter as suas primeiras experiências internacionais, Gabi foi aprovada para estudar na Manhattan School of Music (Nova Iorque), onde foi orientada por Mark Delpriora de 2020 a 2022, um dos mais prestigiados professores de violão do mundo, tornando-se não somente a primeira preta brasileira a ser mestra em música pela instituição, mas conquistando o título com distinção acadêmica.
Desde então, tornou-se uma estrela internacional. A prestigiosa gravadora Rocinante, de quem Gabriele é artista exclusiva, listou com precisão os seus principais feitos nos últimos anos: “Finalmente, depois de ter o nome incluído na lista da revista Forbes under 30 de 2021 (na primeira menção a uma violonista clássica na publicação); depois de ter conquistado o prêmio da revista Concerto na categoria jovem revelação; depois de ter sido agraciada com os prêmios Hubert Kuppel, na Alemanha, o Lillian Fuchs Chamber Music Competition e o Segovia Rose Augustine Award (ambos em Nova Iorque); depois de ter se tornado doutoranda em Performance Musical na Stony Brook University [sob orientação de João Luiz Resende, outro fenômeno do Violão Brasileiro]; depois de ter sido indicada pelo Consulado Brasileiro em Nova Iorque para realizar o concerto de abertura da cerimônia de posse do Brasil como integrante temporário do Conselho de Segurança da ONU; depois de ter se apresentado na abertura musical do jantar de gala do evento “Person of the year 2022” organizado pela Brazilian-American Chamber of Commerce; depois de ter se apresentado no Sesc Festival de Música de Câmara, na Sala São Paulo, no Timucua Arts Foundation, Gabriele lançou Territórios, seu primeiro álbum.”
Aclamado pelo público e pela crítica, Territórios (2023) fez jus ao título e conquistou fama nas Américas e na Europa, desbravando fronteiras e plateias distintas. Antes de pisar no Brasil para as apresentações de julho e agosto, por exemplo, Gabriele realizou uma turnê europeia passando por diversas cidades de Portugal e Holanda, encantando plateias nos ambientes mais heterogêneos possíveis.
Eis um primeiro fato incontornável: não importa o ambiente, a violonista capta as atenções em torno de si por meio de interpretações envolventes e uma presença de palco quase hipnotizantes. Há uma aura incrível cada vez que esta artista toca o seu violão, seja no canto improvisado de uma autoescola, em festivais de jazz europeus, na Sala São Paulo ou no palco feérico do Blue Note Rio. Ninguém escapa à sua presença e tampouco à sua música.


Desta vez, no Rio, Gabriele estava praticamente encerrando as sucessivas turnês do seu álbum Territórios. Na ordem em que foi apresentado, o programa foi o seguinte:
GABRIELE LEITE – BLUE NOTE RIO
PROGRAMA, 06/08/25
PERNAMBUCO, João (1883-1947)
Sons de Carrilhões
NEVES, Armando (1902-1976)
Mafuá
VILLA-LOBOS, Heitor (1887-1959)
Melodia Sentimental
KRIEGER, Edino (1928-2022)
Ritmata
WALTON, William (1902-1983)
Bagatela n. 3
CAMPOS, Lina Pires de (1918-2003)
4 Prelúdios
Ponteio e Toccatina
VILLA-LOBOS, Heitor (1887-1959)
Prelúdio 2
Schottisch-choro (S.P.B.)
Chorinho (S.P.B.)
PERNAMBUCO, João (1883-1947)
Brasileirinho
REIS, Dilermando (1916-1977)
Doutor Sabe Tudo
BELLINATI, Paulo (1950-)
Jongo
BIS:
GAROTO, Aníbal Augusto Sardinha (1915-1955)
Jorge do Fusa
O repertório parece ter sido escolhido para cumprir dois propósitos: ilustrar as gravações realizadas em seu primeiro álbum; e contemplar um público mais amplo, para além das fronteiras dos violões clássico ou brasileiro. Para quem não conhece, o Blue Note Rio é um bar/restaurante situado à beira-mar, no coração de Copacabana, famoso também pelas apresentações de músicos midiáticos e de grande repercussão popular, com um público cativo que costuma contemplar artistas cujos reconhecimentos extrapolaram os seus nichos. O formato não é o de uma sala de concerto, mas o de um palco circundado por mesas nas quais a plateia consome bebidas e comidas enquanto o espetáculo da noite é protagonizado. Foi neste ambiente, portanto, que Gabriele tocou as 17 peças que compuseram o seu programa.


Não à toa, por isso, a artista escolheu iniciar a noite com Sons de Carrilhões, hino informal do violão brasileiro, emendando a peça com Mafuá, outro choro icônico de Armando Neves. Com ginga e um sorriso no rosto durante a performance, o recado subliminar estava dado: “não estou aqui para dividir atenção com copos e pratos. Larguem tudo e escutem o meu violão”. Tudo sem precisar dizer uma só palavra.
Mas quando falou após os aplausos iniciais, também arrebatou: raramente, em qualquer área, temos a chance de assistir a uma artista com tamanho poder de comunicação. Natural, espontânea, potente em cada gesto e fala, cativante e envolvente, como se estivesse conversando com amigas/os de longa data em um ambiente aconchegante e familiar: “deixa eu contar uma história pra vocês...”. E, pronto, lá estávamos enredados por mais um ou outro fato e/ou feito de sua trajetória única.
E aí vem o violão com Melodia Sentimental, de Villa-Lobos, uma das interpretações de Gabriele que, desde antes do disco, já havia se tornado icônica. Puro sentimento e profundidade na condução dos afetos, como se o violão fosse de repente o acúmulo resultante de toda a melancolia e a delicadeza da raça. Incrível, quase assustador, como praticamente nada se ouvia no ambiente além do violão: nem um tilintar de copos ou pratos, tampouco alguma conversa atravessada. Tal qual fizera anos atrás na formatura da autoescola automotiva, a artista não precisou de muito tempo para colocar a heterogênea plateia no bolso.
Na sequência, o que se viu foi o gesto audacioso de se programar três compositores/a (Edino Krieger, William Walton e Lina Pires de Campos) mais vinculados à tradição de concerto e, portanto, menos conhecidos do público geral, destrinchando em suas obras a força telúrica que se conecta ao restante do programa. Primeiro, deu show na Ritmata, de Krieger, destacando cada acento ou salto como se ela e o violão fossem um único organismo, delineando células rítmicas e efeitos percussivos que aproximaram a canonizada peça dos gêneros populares brasileiros. Executou as passagens mais exigentes com um sorriso franco no rosto, como se emulasse alguma traquinice da menina que empunhou uma vassoura-violão na infância. Uma versão de corpo inteiro (vitoriosa, portanto, não apenas nas mãos).
Já do seu registro em álbum das cinco bagatelas do inglês William Walton, tocou a de N. 3, Alla Cubana, peça de temas apaixonantes e nos quais Gabriele pode desvelar, mais uma vez, acentos e contornos criativos. Aqui, vale pontuar a agenda e as demandas diversas do seu repertório atual. Antes do concerto no Rio, Gabriele havia realizado, na véspera, uma apresentação na renomada série Movimento Violão, em São Paulo, dividindo parte do programa em duo com o violonista Edu Guterres, outro jovem brasileiro que vem despontando no cenário internacional. Chegou ao Rio para cumprir reuniões e tocar 17 peças do seu repertório no Blue Note, enquanto prepara uma iminente apresentação com orquestra, em São Paulo, do Concerto para Violão de Villa-Lobos (e no qual ainda fará a abertura tocando a Bagatela N. 1, de Walton, a mais exigente das cinco peças que compõem a série). Não bastasse, na semana seguinte ao concerto, a violonista entrará em estúdio para a gravação de seu 2º álbum pela Rocinante, com um repertório dedicado exclusivamente a duas mulheres compositoras. Entre gravações e performances solo, em duo e com orquestra, temos a soma de um programa de quase 3 horas de música realizado em menos de um mês. Tudo exigido no mais alto nível e em palcos dos mais estrelados e diversos. Feito absolutamente incrível para quem, em tese, estaria em seu período de férias do doutorado.
Do repertório que será gravado no novo álbum, Gabriele tocou cinco obras da compositora Lina Pires de Campos: uma sequência de 4 Prelúdios e a já consagrada Ponteio e Toccatina. Interpretações vibrantes e musicais, com destaque para o Prelúdio em Mib Menor, uma joia do repertório tocada de forma magistral e comovente. Mais uma vez, silêncio absoluto da plateia. E quando Gabriele falou, deixou o recado bem dado: expressou que o álbum era uma resposta à invisibilidade ainda reinante (e injustificável) das mulheres no circuito do violão; conclamou os/as presentes a escutar e prestigiar mais os trabalhos das compositoras e violonistas; e tocou como se libertasse, por um momento, o silenciamento opressivo de todas as suas pares, do passado e do presente. Nas palavras e na música, escutada e aplaudida efusivamente.


Gabriele seguiu o programa com três obras de Villa-Lobos em sequência: Prelúdio 2, Schottish-choro e Chorinho, estas últimas retiradas da Suíte Popular Brasileira. Mais brasilidade e suingue na veia, com destaque para a charmosa e cativante versão da Schottisch. De acordo com a própria Gabi, também não poderiam faltar, em um programa quase integralmente de obras brasileiras, os dois choros preferidos de sua mãe: Brasileirinho, de João Pernambuco; e Doutor Sabe Tudo, de Dilermando Reis. Nesta última, relembrou e homenageou com carinho seu pai, Roberto Leite (o “doutor que acha que sabe tudo”), estendendo a homenagem a todos os papais presentes em função da iminência do Dia dos Pais. Foi outro momento bonito e significativo de seu concerto.
E para encerrar? Uma peça que marcou a trajetória de Gabriele, seja tocando em duo com Edu ou na versão para violão solo: Jongo, de Paulo Bellinati. A artista contou como a obra a levou para lugares distantes do mundo (de Aspen, na Suíça, onde ganhou uma bolsa internacional interpretando-a, até um concerto de luxo no Havaí, quando tocou na festa de 70 anos de um de seus patrocinadores). Aquilo que temos de melhor ganhando o mundo por meio de suas mãos: criatividade, imaginação, expressividade e uma força telúrica indizível que faz a profecia alucinatória do escrivão Pero Vaz de Caminha parecer mais palpável: “Nesta Terra, em se plantando, tudo dá.” No caso desta incrível violonista, felizmente as sementes boas foram possíveis por meio do ensino público, das bolsas que conquistou e de sua imensa dedicação aos propósitos que estabeleceu e estabelece. Não tenho dúvidas de que a colheita seguirá dando bons frutos, proporcional à soma de todas as suas muitas virtudes.
Na plateia do Blue Note, tive a sorte de, aleatoriamente, sentar à mesma mesa de Felipe Mello, professor de violão da UEMG, que estava de passagem no Rio de Janeiro e não perdeu a chance de escutar Gabriele. Também estiveram presentes Nicolas de Souza Barros e Maria do Céu, compositora e violonista de destacada carreira e que deixou o seguinte depoimento sobre a apresentação: “Quanta musicalidade, brasilidade, gingado, intimidade com o instrumento, energia e além de tudo, simplicidade, simpatia e senso de humor.” E, não que isso defina Gabi, mas uma prova de sua internacionalização e de seu prestígio para além dos muros do violão também foi dada de forma peremptória neste concerto: na primeira mesa à esquerda do palco, Walter Salles, o genial cineasta brasileiro que, há décadas, representa e orgulha a arte brasileira com sucessivas premiações nos mais importantes festivais de cinema do globo, estava atento a aplaudi-la, orgulhosamente, como que novamente reconhecendo, desta vez da plateia, aquilo que desponta de mais profundo e expressivo em nossa cultura. “It’s an extraordinary thing!”, disse o cineasta ao conquistar o primeiro Oscar para o Brasil. “Algo extraordinário” é uma sentença que, letra por letra, também vale para descrever a existência de Gabriele Leite neste planeta.


Uma nota pessoal. Acompanho a carreira de Gabriele desde que ela começou a despontar e sempre pressenti uma energia diferente em sua música, rara mistura de força, talento e brilho. Em 2020, durante a pandemia, convidei-a para participar da histórica edição temática de violão da Revista Vórtex (V. 8, N. 3), quando ela gravou um belo registro ao lado de ícones do violão brasileiro e internacional. Em 2022, encomendei da premiada artista plástica de São Paulo, Selma Antunes, uma aquarela do perfil de Gabi com o objetivo de expor a obra permanentemente na parede do Memorial do Violão Brasileiro, no Rio de Janeiro. A bela obra de Selma hoje se encontra ao lado de violões, documentos e outras/os personagens históricos. Aproveitei, também, a apresentação no Blue Note Rio para levar um adesivo branco e recolher a assinatura de Gabriele, de modo que pudesse destacar o autógrafo ao lado de sua imagem. Eis o resultado:


Dos palcos da vida para destaque na parede de um Museu (e vice-versa). A artista segue fazendo história e já se tornou uma estrela e referência para além de seu instrumento, já que, por onde passa, ressignifica o mundo ao conjugar corpo, presença, palavra e música. Gabriele Leite: mulher, preta, violonista, virtuose... Um orgulho brasileiro no topo do mundo!
Humberto Amorim
Professor (UFRJ), violonista, pesquisador e fundador do Memorial do Violão Brasileiro

