ABRE ALAS: Quarteto Abayomi celebra a obra de mulheres
Resenha do EP Abre Alas, do Quarteto Abayomi
COLUNA HUMBERTO AMORIM
10/4/202510 min read


Já está disponível, em todas as plataformas digitais (Spotify, Amazon, Apple, Youtube, Tidal), o EP (Extended Play) Abre-Alas, do Quarteto Abayomi, grupo radicado em Tatuí (SP) e atualmente formado por Josiane Gonçalves (violão 7 cordas/voz), Juliana Oliveira (violão), Daniel Pereira (bandolim) e Guilherme Sparrapan (violão 7 cordas), todos músicos de escol.
Desde a sua fundação, em 2008, o grupo passou por diferentes formações e teve em seus quadros alguns dos mais talentosos músicos paulistas das últimas gerações, incluindo a virtuose Gabriele Leite, hoje uma expressão internacional do violão brasileiro. Da formação original, permanecem as duas mulheres fundadoras, Josi Gonçalves e Juliana Oliveira. A composição atual está junta desde 2021, quando Gabriele se mudou para os Estados Unidos e Daniel (que já participava do grupo em apresentações pontuais) a substituiu, trazendo definitivamente o bandolim para a sonoridade do conjunto.


Acompanho o grupo desde o início e não hesito em afirmar que, além da qualidade individual de seus membros, o quarteto sempre se destacou pela concepção original e criativa, uma impressão ratificada pela conquista de alguns importantes prêmios, indicações ou editais, como o Mapa Cultural Paulista (2010), o ProAC ou o 24º Prêmio da Música Brasileira. Essa criatividade singular os levou a brilhar em importantes séries e palcos latino-americanos (Festival Assad, Movimento Violão e celebradas apresentações na Argentina e Bolívia), além de protagonizar programas de televisão de alcance nacional (Sr. Brasil, Talentos, SESC-TV).


A originalidade do grupo, aliás, começa pelo nome. Atualmente, Abayomi é uma palavra que remete a múltiplos significados e/ou práticas, mas foi o seu sentido original que inspirou o nome de batismo do quarteto. De origem Iorubá, o termo africano pode ser livremente traduzido por “encontro precioso” ou “aquela que traz alegria ou felicidade”. Um gesto em direção ao resgate cultural de povos que, embora decisivos na construção do Brasil, muitas vezes são histórica e socialmente soterrados: pretos, pardos, índios. A preocupação com o resgate sociocultural destes grupos se emaranhou no trabalho prático do conjunto desde o princípio. Na pesquisa do repertório, na elaboração dos arranjos ou nas escolhas interpretativas, o Quarteto sempre deu a ver (e escutar) músicas brasileiras folclóricas, regionais ou urbanas que dialogam com esse Brasil mais profundo, conectado às nossas raízes múltiplas e diversas. O amadurecimento deste processo resultou no celebrado CD inaugural do grupo: Delicado (2013).


De lá para cá, passaram-se 12 anos, mas o conjunto permanece com o intuito de cumprir um duplo propósito: realizar um trabalho artístico relevante e criativo ao mesmo tempo em que nos convida a refletir sobre os forçosos apagamentos de nossa história. No EP que acaba de ser lançado, Abre Alas, a tônica é dar voz à força criativa e criadora das mulheres, resgatando e desdobrando o legado de três icônicas artistas brasileiras: Francisca Gonzaga (1847-1935), Carmen Miranda (1909-1955) e Badi Assad (1966-). As cinco músicas que compõem o EP são apresentadas às/aos ouvintes na seguinte ordem:
ABRE-ALAS (EP)
Quarteto Abayomi
1. Gaúcho (Corta-Jaca)
Francisca Gonzaga
2. Atraente
Francisca Gonzaga
3. Noite de São João
Badi Assad
4. O Barco Daqui de Dentro
Badi Assad
5. Tique-Taque do Meu Coração
Alcyr Pires Vermelho / Walfrido Silva
A primeira mulher que desponta como homenageada é a lendária Francisca Gonzaga, personagem decisiva e pioneira, em diversos sentidos, para a cultura e a sociedade brasileiras. O título do trabalho remete à famosa marchinha Ó Abre Alas, cujo verso inicial – Ó Abre Alas / que eu quero passar – popularizou-se de tal modo que, para além do contexto carnavalesco original, tornou-se símbolo das vozes oprimidas que lutam por seus devidos resgates históricos. Com a escolha do título, portanto, a mensagem do Quarteto Abayomi é nítida: abram alas (e ouvidos) que a força criativa das mulheres vai passar...
Para quem não conhece a incrível trajetória de Francisca, aliás, recomendo a visita ao site oficial administrado pelo pesquisador Wandrei Braga, que oferece uma experiência de imersão completa no legado vivo da artista: https://chiquinhagonzaga.com


Mulher e mestiça, enfrentou todos os preconceitos da sociedade patriarcal e escravista para se firmar como pianista, compositora, regente e, por fim, líder de classe em defesa dos direitos autorais. Sua obra é estimada em trezentas composições, incluindo partituras para dezenas de peças teatrais. Precursora em várias frentes, Chiquinha foi a primeira mulher a compor para o teatro nacional. / Pioneira, Chiquinha Gonzaga abriu alas para todas e todos, deixando seu exemplo de luta pelas liberdades no Brasil. (Wandrei Braga, 2023)
As duas peças de Francisca Gonzaga que abrem o EP, portanto, não poderiam deixar de estar inseridas neste contexto de conquista de espaços e quebra de paradigmas:
Gaúcho (Corta-Jaca) e Atraente.
A primeira esteve no centro de um dos momentos mais icônicos da cultura brasileira, (co)protagonizado pelas mãos de outra artista pioneira e decisiva de nossa história: Nair de Teffé (1886-1981), multiartista reconhecida por suas caricaturas, pinturas e trabalhos musicais. Nair foi casada com o Marechal Hermes da Fonseca, que presidiu o Brasil entre 1910 e 1914. No apagar das luzes de seu mandato, foi promovida uma recepção no Palácio do Catete (sede do governo), no Rio de Janeiro, prestigiada pelo corpo diplomático, autoridades políticas e militares, além da nata da sociedade civil. No programa apresentado na ocasião, números de piano, canto e bandolim. Contudo, o que sacudiu a República foram os solos de violão protagonizados por Ernani de Figueiredo e, sobretudo, Nair de Teffé (que cantava, compunha e tocava piano e violão). Precisamente em 26 de outubro de 1914, em pleno salão presidencial, a então primeira-dama (que assinou o programa como MME. [Madame] Nair Hermes) solou o tango brasileiro Gaúcho (Corta-Jaca) diante da plateia ilustre. Bomba!
Não tardou para que o senador e intelectual Ruy Barbosa, adversário político de Hermes da Fonseca, fosse à tribuna do Senado Federal para condenar o acontecimento, em um discurso que tomou as páginas dos jornais e se tornou espelho da resistência enfrentada pela cultura popular nos ambientes oficiais, políticos e financeiros.
[...] E que crueldade não é esta de querer abafar a gargalhada quando ella vem espontânea e irrepremivel? Porque, sr. presidente, quem é o culpado, se os jornais, as caricaturas e os moços acadêmicos aludem ao ‘corta-jaca’?
Uma das folhas de hontem estampou em fac-simile o programma da recepção presidencial, em que deante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aquelles que deviam dar ao paiz o exemplo das maneiras mais distinctas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser elle, sr. presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciaes, o corta-jaca é executado com todas as honras de musica de Wagner, e não se quer que a consciencia deste paiz se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria! [...] [Ruy Barbosa]. (O Imparcial, 1914, p. 3). [preservamos a ortografia original da fonte]
Já a peça seguinte do EP, Atraente, foi o primeiro grande sucesso de Francisca Gonzaga, lançada ao público em um contexto no qual reconhecimento e fardo caminhavam lado a lado:
A Chiquinha Gonzaga que emerge no cenário musical do Rio de Janeiro em 1877, após desilusão amorosa, maldição familiar, condenações morais e desgostos pessoais, é uma mulher que precisa sobreviver do que sabia fazer: tocar piano. Ninguém ousara tanto. Praticar música ao piano, ou até mesmo compor e publicar, não era incomum às senhoras de então, mas sempre mantendo o respeito ao espaço feminino por excelência, o da vida privada. A profissionalização da mulher como músico (e ainda mais aquele tipo de música de dança para consumo nos salões!) era fato inédito na sociedade da época. A atividade exigia talento, determinação e coragem – qualidades que não faltavam a Chiquinha Gonzaga. Sua estreia como compositora se deu com a polca Atraente, cujo sucesso foi mais um fardo para sua reputação.
Fonte: (Edinha Diniz, 2011, autora da biografia Chiquinha Gonzaga: uma história de vida).
Excerto disponível em:
https://chiquinhagonzaga.com/wp/biografia-de-chiquinha-gonzaga/
No EP, as duas músicas da sequência são assinadas por Badi Assad, artista de múltiplos encantamentos: compositora, cantora, violonista e capaz de realizar efeitos vocais melódicos e percussivos com raríssima habilidade. Em suas performances, Badi costuma utilizar todas essas valências simultaneamente, criando um estilo personalíssimo e incomparável. É, sem dúvida, das artistas mais incríveis de nosso tempo (e não me refiro apenas à Música Brasileira), fato corroborado pelo alcance de seus últimos álbuns e turnês, que definitivamente a projetaram como uma artista de destaque internacional.


A primeira de suas músicas gravada pelo quarteto foi a encantadora balada Noite de São João, que a gente escuta com um sorriso no rosto (e na alma), como se estivéssemos sendo levados pelo vento em um balão junino, daqueles que guardam dentro todos os nossos sonhos e fantasias:
Foi numa noite de São João / Que peguei meus desejos e pus num balão / Fechei meus olhos e ele se foi / Sumindo dentro da escuridão / Levando os meus sonhos pela noite / E dentro dele minha solidão [...]
(Badi Assad, Noite de São João)
Parece uma preparação para a mensagem sonora e poética da belíssima canção seguinte: O Barco Aqui de Dentro, ponto alto do EP. A música já havia recebido um antológico registro da própria Badi Assad, em 2022, no celebrado álbum Around the World (foto acima), mas a versão do Quarteto Abayomi é igualmente imperdível: arranjo preciso, com passagens dialógicas e criativas entre a voz e os instrumentos, além de uma interpretação vibrante de Josiane Gonçalves. Uma canção tão delicada e profunda que deveria estar nos lábios de todas as pessoas que ainda ousam encarar a vida como a possível e aventureira arte do encontro.
Me navega, me veleja / Me descobre mar adentro / Me sacode, me arrepia / Me inunda até o centro / Me sossega, me areja / Me carrega bem pra dentro / Me acode, me alicia / Me passeia assim, bem lento [...]
(Badi Assad, O Barco Aqui de Dentro)
Badi, apesar do merecido reconhecimento mundial, deveria ser uma artista mais prestigiada em seu próprio país. Suas músicas são puras, com aquela simplicidade profunda tão difícil de alcançar, esmeradas não somente por um domínio técnico absurdo, mas sobretudo por um toque de humanidade que só os seres especiais cultivam. Juliana Oliveira, em depoimento exclusivo para o Memorial do Violão, ratifica como a obra de Badi, mesmo dentro de nossos nichos, ainda é pouquíssimo conhecida:
“O processo de escolha do repertório foi justamente para homenagear mulheres que, como você sabe bem, são sempre um pouco mais apagadas. Até a escolha da Badi se deu porque fizemos uma apresentação com ela e o seu repertório que eu mesma desconhecia.”
(Juliana Oliveira, Quarteto Abayomi).


Para finalizar, uma homenagem à arrebatadora Carmen Miranda, um dos símbolos culturais do Brasil no mundo e uma estrela pioneira nos mercados fonográficos e audiovisuais. Desenvolvida entre as décadas de 1920 e 1950, a carreira de Carmen fez tamanho sucesso que, além de conquistar prêmios, marcas e distinções, credenciou-a a ser, em 1945, a mulher mais bem paga dos Estados Unidos (onde se radicara em 1939), muito em função dos papeis que representou na indústria cinematográfica de Hollywood. Em uma dessas atuações, imortalizou a canção Tic-Tac do Meu Coração (Alcyr Pires Vermelho e Valfrido Silva) no filme Minha Secretária Brasileira (1942). A música, que ela já havia gravado em 1935 com Benedito Lacerda, tornou-se instantaneamente uma febre mundial, eternizando de vez seus gestos, figurinos, passos e voz. Com um arranjo vibrante, o quarteto Abayomi recria esta brasilidade envolvente imortalizada por Carmen, inclusive com efeitos onomatopeicos que emulam esse tique-taque brasileiro tão próprio, misto de força telúrica, ginga e melancolia:
“[...] O tic-tic, o tic-tac do meu coração / Marca o compasso de um atroz viver / É o relógio de uma existência / E pouco a pouco vai morrendo de tanto sofrer [...].” (Alcyr Pires Vermelho / Valfrido Silva).


Cinco peças que nos enlaçam: tanto pela proposta acertada quanto pelo nó musical que oferecem, técnica e emocionalmente. A sonoridade do grupo revela uma sinergia amadurecida: instrumentos de base integrados e complementares, um bandolim sempre criativo e dialógico, além de uma voz vibrante e envolvente. Tal trama é costurada em arranjos inspirados e muito bem arquitetados/sequenciados, o que nos descortina a experiência de apreciar o EP como uma grande suíte. Enquanto escrevia o texto, por exemplo, deixei a playlist tocando repetidamente, em looping, sem me dar conta da passagem do tempo. Isto sugere a dimensão do prazer de escuta que o trabalho suscita: vai nos levando, cativando, envolvendo quase sem que a gente se dê conta...


E tudo isso sem precisar de virtuosismos histriônicos ou efeitos rasos. Talvez o maior mérito do conjunto seja justamente esse: pautar a obra e o legado de três mulheres únicas deixando que a obra de cada uma delas seja a grande protagonista. Não há andamentos demasiadamente acelerados sem necessidade, nem passagens virtuosísticas desconectadas do todo, tampouco efeitos instrumentais ou vocais artificiais. Tudo equilibrado. Tudo envolvente. Tudo criativo. E sem abrir mão, em nenhum momento, da força viva e arrebatadora das mulheres homenageadas.
Em síntese, pela necessária proposta (visibilizar a obra e o legado de mulheres) e pelo alto nível de realização artística, Abre Alas, do Quarteto Abayomi, é, desde já, uma inescapável referência fonográfica não somente para os amantes do violão em contexto camerístico, mas para a Música Brasileira, de forma geral.
Humberto Amorim
Professor (UFRJ), pesquisador, violonista
e fundador do Memorial do Violão Brasileiro
