A montanha sem cume

Histórias do Memorial #1: Os primeiros passos

COLUNA HUMBERTO AMORIM

10/7/20243 min read

Foi em uma noite de maio, em 2022. Chico e eu nos preparávamos pra dormir em nossa antiga casa, em Pilares, subúrbio do Rio de Janeiro.

Os tempos eram difíceis. A fase mais dura da pandemia de Covid-19 acabara de passar, mas ainda vivíamos parcialmente sob os seus efeitos, isolados, entre nossos violões e partituras.

Àquela altura, tínhamos apenas 12 instrumentos, mas a documentação reunida por décadas já tomava integralmente os armários grandes de dois cômodos da casa, ao mesmo tempo em que começávamos a colecionar também outros artefatos relacionados ao violão: medalhas, selos, cédulas, cartas, metrônomos, pezinhos, acessórios, cordas, toda espécie de objetos iconográficos, etc. Esse material começava a nos oprimir dentro de nossa própria casa, reclamando cada vez mais e mais espaços. Percebemos que adentrar no quarto de hóspedes começou a se tornar uma aventura...

Certo dia, recebemos pelo correio uma carta manuscrita antiga de Brant Horta, intelectual, literato e um dos pioneiros do violão no Brasil, adquirida em um antiquário. Antes de dormir, olhando aquele documento quase centenário e de caligrafia irrepreensível, eu e Chico nos entreolhamos, emocionados, e me escapuliu uma frase quase inconsequente: “filho, vamos montar um Museu?”

Sem hesitar, Chico, então com 8 anos incompletos, sorriu e respondeu com a pureza e a vibração que só as crianças, os loucos e os sonhadores preservam: “Vamos, papai!”. Fomos dormir e, naquela noite, sonhei com um espaço que tinha um pequeno palco de madeira, muitos violões e cortinas vermelhas.

O que aconteceu dali em diante foi uma sucessão de acontecimentos que se encaixaram quase que milagrosamente para que aquele sonho aparentemente intangível fosse, aos poucos, ganhando vida: a pandemia havia derrubado vertiginosamente os preços das salas comerciais no coração cultural do Rio de Janeiro, a Cinelândia. Hoje, por exemplo, seria impensável dar entrada em uma sede própria; conseguimos nos mudar para um apartamento na rua paralela ao Memorial; os instrumentos e artefatos antigos foram se multiplicando por meio dos amigos, contatos, doações, viagens aos interiores mais profundos do Brasil enquanto eu participava de eventos; os parceiros, por vezes improváveis, foram chegando, somando, sorrindo. A cada mês, uma pequena etapa se cumpria. Aperta daqui, ajusta dali, parcela a necessidade mais urgente. Persiste... de novo...mais um pouco... mais um pouco... mais um pouco... E, aí está, o sonho vingou.

Por muito tempo, acreditei na máxima: “crie os fatos que as condições se criam”. Hoje, penso inversamente: “crie as condições que o fato se cria”. O caminhar firme, constante e resiliente passou a me ser ainda mais caro que o próprio sonho, sincero e puro de coração, dimensão de existência pela qual sempre me guiei.

Nossas cadeiras jamais estão vazias. São os mestres e mestras do passado que nos conduzem, rearticulando sua vida no presente, entre nós. Que honremos a confiança dessa bonita missão. Não estamos sozinhos. Jamais estaremos.

Fica o registro do antes e depois inaugural. Nosso mantra, contudo, seguirá vivo e latente:

“Há muito por fazer e a nossa caminhada é a da montanha sem cume”.

A foto abaixo foi tirada logo depois que o espaço foi adquirido, em dezembro de 2022. No registro, aparece o Léo Zanelli, amigo fundamental do Memorial, montando os primeiros suportes de violão encomendados para essa aventura.